sábado, 11 de outubro de 2008

O mito do colapso americano

Na segunda feira, 6 de outubro de 2008, a crise financeira americana
desembarcou na Europa e repercutiu em todo mundo de forma violenta. As
principais Bolsas de Valores do mundo tiveram quedas expressivas, e
governos e bancos centrais tiveram que intervir para manter a liquidez
e o crédito de seus sistemas bancários. Neste momento, não cabem mais
dúvidas: a crise financeira que começou pelo mercado imobiliário de
alto risco dos EUA já se transformou numa crise profunda e global,
destruiu uma quantidade fabulosa de riqueza e deverá atingir de forma
mais ou menos extensa, desigual e prolongada, a economia real dos EUA
e de todos os países do mundo. Muitos bancos e empresas seguirão
quebrando, nascerão rapidamente novas regras e instituições, e haverá
nos próximos meses uma gigantesca centralização do capital financeiro,
sobretudo nos EUA e na Europa. Os bancos e organismos multinacionais
seguem paralisados e impotentes e se aprofunda, por todo lado, a
tendência à estatização de empresas, à regulação dos mercados e ao
aumento do protecionismo e do nacionalismo econômico. De todos os
pontos de vista, acabou a "era Tatcher/Reagan" e foi para o balaio da
história o "modelo neoliberal" anglo-americano, junto com as idéias
econômicas hegemônicas nos últimos 30 anos. Como contrapartida, mesmo
sem fazer proselitismo explícito, deverá ganhar pontos, nos próximos
meses e anos, em todas as latitudes, o "modelo chinês"
nacional-estatista, centralizante e planejador.

No meio do tiroteio, é difícil de pensar. Talvez por isto,
multiplicam-se, na imprensa e na academia, os adjetivos, as
exclamações e as profecias apocalípticas, anunciando o fim da
supremacia mundial do dólar e do poder global dos EUA, ou do próprio
capitalismo americano. Na mesma hora em que os governos e investidores
de todo mundo estão se refugiando no próprio dólar e nos títulos do
Tesouro americano, apesar de sua baixíssima rentabilidade e apesar de
que o epicentro da crise esteja nos EUA. E, o que é mais interessante,
são os governos dos Estados que estariam ameaçando a supremacia
americana os primeiros a se refugiarem na moeda e nos títulos
americanos. Para explicar este comportamento aparentemente paradoxal,
é preciso deixar de lado as teorias econômicas convencionais sobre o
"padrão-ouro" e o "padrão-dólar", e também as teorias políticas
convencionais sobre as crises e "sucessões hegemônicas" dentro do
sistema mundial.

Comecemos pelo paradoxo da "fuga para o dólar", em resposta à crise do
próprio dólar. Aqui é preciso entender algumas características
específicas e fundamentais do sistema "dólar-flexível". Desde a década
de 1970, os EUA se transformaram no "mercado financeiro do mundo", e o
seu Banco Central (Fed), passou a emitir uma moeda nacional de
circulação internacional, sem base metálica, administrada através das
taxas de juros do próprio Fed e dos títulos emitidos pelo Tesouro
americano, que atuam em todo mundo como lastro do sistema
"dólar-flexível". Por isto, a quase totalidade dos passivos externos
americanos é denominada em dólares e praticamente todas as importações
de bens e serviços dos EUA são pagas exclusivamente em dólar. Uma
situação única que gera enorme assimetria entre o ajuste externo dos
EUA e dos demais países. Por isto também, a remuneração em dólares dos
passivos externos financeiros americanos que são todos denominados em
dólar seguem de perto a trajetória das taxas de juros determinadas
pela própria política monetária americana, configurando um caso único
em que um país devedor determina a taxa de juros de sua própria
"dívida externa".

Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta
de forma exclusiva no poder político e econômico americano. Agora
mesmo, por exemplo, para enfrentar a crise, o Tesouro americano
emitirá novos títulos que serão comprados pelos governos e
investidores de todo mundo, como justifica o influente economista
chinês, Yuan Gangming, ao garantir que "é bom para a China investir
muito nos EUA; porque não há muitas outras opções para suas reservas
internacionais de quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos
EUA são interdependentes". (FSP, 24/11).

Mas, além disto, do ponto de vista da hierarquia mundial, se esta
crise for administrada de forma estratégica pelo governo americano,
ela poderá reforçar, ao invés de enfraquecer, a posição futura dos EUA
dentro do sistema mundial. Para entender este segundo paradoxo,
entretanto, é necessário ir um pouco além da economia e das finanças,
e analisar com cuidado a origem e os desdobramentos das crises e da
competição entre os Estados nacionais. Em primeiro lugar, quase todas
as grandes crises do sistema mundial foram provocadas, até hoje, pela
própria potência hegemônica. Em segundo lugar, estas crises são
provocadas quase sempre pela expansão vitoriosa (e não pelo declínio)
das potências capazes de atropelar as regras e instituições que eles
mesmos criaram num momento anterior, e que depois se transformam num
obstáculo no caminho da sua própria expansão. Em terceiro lugar, o
sucesso econômico e a expansão do poder da potência-líder é um
elemento fundamental para o fortalecimento de todos os demais Estados
e economias que se proponham concorrer ou "substituir" a potência
hegemônica. Por isto, finalmente, as crises provocadas pela
"exuberância expansiva" da potência-líder afetam em geral de forma
mais perversa e destrutiva aos "concorrentes" do que ao próprio líder,
que costuma se recuperar de forma mais rápida e poderosa do que os
demais.

Resumindo: "apesar da violência desta crise financeira, não deverá
haver um vácuo nem uma 'sucessão' na liderança política e militar do
sistema mundial. E, do ponto de vista econômico, o mais provável é que
ocorra uma fusão financeira cada maior entre a China e os Estados
Unidos".



José Luís Fiori
professor titular do Instituto de Economia da UFRJ.
Artigo publicado no Valor Econômico (08/10)

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