Hamilton Octavio de Souza*
O governo Lula corrói a esquerda silenciosamente, por dentro, nas entranhas, como o câncer. É diferente do que acontece quando se tem a luta aberta contra a direita, quando é possível identificar mais claramente os inimigos. Dizer o óbvio, que a direita é mais truculenta do que a geléia geral do governo Lula, não contribui para definir a tática da esquerda. A geléia geral é sim menos truculenta, mas é mais danosa na medida em que age no interior das fileiras da esquerda, divide as forças, acomoda, corrompe, coopta, quebra a capacidade crítica e a combatividade. A direita no governo é mais dura nas bordoadas, mas causa menos danos à essência dos compromissos políticos e éticos da esquerda.
O raciocínio esquemático de setores da esquerda costuma enfatizar que fazer oposição ao governo Lula é apostar no pior, e que o pior só favorece os inimigos da esquerda. De acordo com esse raciocínio, é preferível engolir o governo Lula e a política hegemônica do PT do que entregar o governo para o PSDB-DEM e caterva. Se os inimigos verdadeiros são o capital, a burguesia e seus representantes, no momento atual a situação é altamente favorável aos inimigos, já que o modelo econômico mantido pelo governo Lula – e os grandes negócios do Estado com o empresariado – tem permitido a mais estupenda acumulação, total liberdade de atuação, entrega dos recursos naturais e do patrimônio nacional – praticamente sem restrições.
Nunca o capital viveu uma situação tão vantajosa nos mais de cem anos de República. Além disso, contribui para deixar o inimigo à vontade o fato real e concreto de que a força hegemônica nas esquerdas, o PT, consente com as políticas do governo Lula e não oferece nenhuma resistência à espoliação capitalista. O capital está nadando de braçada justamente porque a esquerda dividida fornece um ambiente de "tranqüilidade e paz" para o avanço do capital sobre as forças do trabalho.
O raciocínio político que precisa ser colocado na conjuntura não pode ser obviamente em cima das eventuais benesses – circunstanciais e passageiras – proporcionadas pelo atual governo. Mesmo porque não existe nada sob controle no jogo eleitoral. Essa visão é essencialmente fisiológica, na medida em que contempla vantagens e desvantagens da atual aliança com o capital, seja nas políticas assistencialistas, na suposta contenção da selvageria ou nas inúmeras sinecuras a setores da militância antes ignorados e excluídos. Não dá para confundir estratégia política com lealdade e gratidão.
O que precisa ser verificado realmente é a análise se tais ações de governo contribuem ou não para a organização e o acúmulo de forças no campo popular e das esquerdas. E está claro, até o presente momento, desde 1º de janeiro de 2003, que o governo do PT com as forças conservadoras e de direita tem contribuído muito mais para reorganizar esses setores dominantes, revitalizar antigas oligarquias, vitaminar os grupos empresariais – do que fortalecer o outro lado.
Pela lógica dos amigos e inimigos, podemos afirmar que o atual governo e suas políticas são inimigos do avanço das esquerdas e das verdadeiras transformações sociais. É claro que no balanço das relações clientelistas com a sociedade, o atual governo tem ampla vantagem em relação aos anteriores. Mas no processo de lutas de médio e longo prazo, o atual governo é mais corrosivo do que uma eventual articulação das esquerdas para o enfrentamento aberto contra as forças do capital.
A reunificação e o avanço das forças de esquerda, com o respaldo do movimento social popular, só pode acontecer no momento de convergência da análise centrada no combate às oligarquias, ao capital e ao imperialismo; na proposta de construção de uma nova sociedade sem oprimidos e sem explorados. Se o governo federal não soma nesse processo, não viabiliza avanços contra os verdadeiros inimigos do povo brasileiro, o terreno da luta e da aglutinação só são possíveis no campo da oposição. Fazer oposição ao governo, portanto, não é escolher o pior, é impedir que o pior continue inviabilizando a articulação de forças no campo das esquerdas, é estabelecer uma fronteira clara – para ser facilmente identificada pelo povo – entre aquilo que fortalece o modelo hegemônico do capital e o que constitui a alternativa nacional, popular e socialista.
Não dá mais para ficar jogando fumaça no quadro político. O caminho precisa ganhar nitidez.
*Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor da PUC-SP
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