Kolontai, revolucionária combativa e dirigente competente, todos sabem, era uma mulher de dotes físicos admiráveis. Com o que, e principalmente pelo seu comportamento individual libertário, exercia forte influência sobre seus pares, em um momento em que os embates sobre os caminhos da Revolução eram disputados por uma direção de altíssimo nível, mas onde a maioria era conquistada em cada confronto específico.
Comenta-se que, para evitar problemas com sua camarada de lutas, por quem tinha respeito, mas de quem temia posições sectárias, Lenin preferiu afastá-la do núcleo de comando. Por conta disso, nomeou-a embaixadora na Suécia.
Pois bem, e aí vamos ao grão, em sua primeira entrevista coletiva, ela se vê acossada pela inconveniência de uma pergunta de um jornalista sueco: “Como se explica que eu, filho de um operário, me veja na condição de social-democrata, enquanto a senhora, filha de um general czarista, se transforma em líder bolchevique?”
Kolontai não hesitou, e desmontou o inquisidor com a resposta: “Isto se explica porque somos, ambos, traidores de classe”.
Essa historinha de tempos heróicos, difíceis de imaginar no tempo em que vivemos, me ocorreu por conta da brutalidade das últimas declarações de Luiz Inácio Lula da Silva, em uma de suas incontáveis aparições públicas, onde discursa para criar manchetes de jornal.
Não; não estou me referindo aos vilões de pele branca e olhos azuis. Quem tem que comentar tal deslize com mais propriedade é João Pedro Stédile, que bate na trave da descrição presidencial sobre os responsáveis pela crise gerada com a hegemonia do sistema financeiro privado sobre a economia globalizada. Ou o humanista Leandro Konder, com uma vida dedicada ao combate
intelectual sem tréguas ao capitalismo.
Estou me referindo ao absurdo do comício em que Lula conclamou os trabalhadores a, diante da complexa conjuntura atual, abrir mão do direito de reivindicar justa participação salarial na riqueza que produzem. "Hoje, mais do que fazer uma pauta de reivindicação pedindo mais aumento, temos que contribuir para que as empresas vendam mais" foi o que ele afirmou, sem
corar, na Feira de Construção Civil semana passada.
O que quer dizer tal barbaridade? É por ignorância ou por má-fé serviçal que alguém, invocando sua condição original de sindicalista, conclama os trabalhadores a se sacrificarem para que os patrões não se vejam prejudicados na manutenção da taxa de lucro obtida pela exploração da
mais-valia desses trabalhadores?
Tenho certeza de que não é por ignorância. E isto já havia sido demonstrado quando, por ocasião do encontro com o patronato da Embraer, Lula aceitou pacificamente os argumentos da empresa que terminara de demitir mais de 4000 trabalhadores. Argumentos que não impediram, logo depois, à Justiça do Trabalho, impor suspensão à medida, com imediata reintegração dos demitidos.
E não por acaso, assim agiu a Justiça. A Embraer não demitia porque não poderia pagar. Pelo contrário. Embora perdendo encomendas no exterior, seu fluxo de produção continuava normal. O que ela executava era em função de prever queda de faturamento futuro por conta do desdobramento da crise nos ditos países desenvolvidos. Ou seja; na possibilidade de diminuição dos lucros a partir de 2010, a Embraer se dava ao luxo de demitir, desde já, 4000 chefes de família, sem nenhuma proposta intermediária – férias coletivas, plano de demissão voluntária – a ser apresentada aos que tiveram as cabeças cortadas. O engulho é duplo quando nos recordamos que boa parte dos projetos exitosos da Embraer foi produto de sua fase estatal.
Lula, com seu discurso, deu provas, mais uma vez: um auto-proclamado representante do mundo do trabalho pode ser mais eficiente na defesa dos interesses do grande capital do que um magistrado, com origem acadêmica universitária, e previsivelmente muito mais identificado com este segmento privilegiado.
Com a extraordinária competência perversa do seu espírito pragmático, gera movimentos transformistas extremamente ambíguos, como os que executa em sua política externa, instalando confusão ideológica até entre seus adversários.
O exemplo mais recente está na participação na reunião dos ditos chefes de Estado “progressistas”, realizado em Viña Del Mar, numa preparação da reunião dos G-20. Ali, defendeu enfaticamente o Estado forte, regulamentador. Sem dúvida, Lula pratica um Estado atuante na economia, mas não no benefício dos mais necessitados de forma direta. Estado forte é o que põe em movimento com as isenções tributárias, subsídios e financiamentos a juros privilegiados que fornece ao grande capital. Quando obrigado a se posicionar na contrapartida social, a linguagem interna se modifica. Para além da “forma barata de tratar a pobreza”, com o Bolsa-Família, o Estado só faz se omitir nos conflitos sociais e trabalhistas.
Os banqueiros e os predadores do agronegócio, aliás, há muito tempo já haviam constatado isso.
Milton Temer
jornalista e presidente
da Fundação Lauro Campo
jornalista e presidente
da Fundação Lauro Campo
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