sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O Dia em que Morri


Eu não sabia que a morte estava tão próxima. Não! Não se tratam de memórias póstumas e sim de memórias. Memórias que jamais serão póstumas. Quinta-feira talvez seja um bom dia para morrer. No dia 30 de novembro, o juiz anunciou a reintegração de posse das terras do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em Limeira. Truculência e violência foram as flores que cobriram meu caixão.
Na manhã desta quinta-feira, a Polícia Militar juntamente com a Tropa de Choque e a Cavalaria invadiram o acampamento onde estavam acampadas mais de 200 famílias. E o sol ficou esquecido entre a fumaça. Aquele que ainda tentava olhar para o sol não conseguiu, pois a fumaça das bombas impediu, sem contar os tiros e o gás lacrimogêneo. Sem qualquer respeito por direitos humanos, policiais invadiram o local e derrubaram os barracões das famílias, não respeitando nem mesmo a capela, nem mesmo o padre ou a freira que também se feriram.
Muitos companheiros do acampamento ficaram feridos, tiveram de ser levados ao hospital e, mesmo assim, a polícia não deu trégua, continuou sua ação truculenta passando por cima de crianças e mulheres. Talvez a polícia, o prefeito de Limeira, o juiz e o oficial de justiça não vissem essas famílias como seres humanos repletos de direitos que deveriam garantir dignidade. Em meio às conversas, nós conseguíamos ouvir: “Vamos tirar esses vagabundos daí logo, porque eu quero ir para casa”. Mas do outro lado estavam famílias indefesas, mulheres, crianças e pessoas deficientes. Famílias que não têm como ou com o quê se defender. A única garantia é a presença de parlamentares ou representantes de entidades que podem ajudar a impedir a violência.

Mesmo assim, os policiais não queriam saber quem está do outro lado. O diretor de transportes de Limeira, Roger Rocha, disse para seus funcionários – servidores públicos- que se afastassem de nós. Essa movimentação gerou estranheza e cuidado. O pior começou a marchar. A Tropa de Choque retirou suas plaquetas de identificação e começou a marchar em nossa direção. Começaram a impedir a entrada e a permanência da imprensa que, graças ao bom senso, não nos abandonou e ali permaneceu para evitar uma tragédia ainda maior. Desesperadas, as famílias começaram a carregar os caminhões com os alimentos. O horror estava instaurado novamente e, desta vez, o sol não nos ajudava. O sol já baixava e a noite acobertaria mais atos violentos.
A Tropa de Choque vinha em nossa direção e por uma ordem superior batiam seus cacetetes nos escudos. Esse som me fez compreender ainda mais o significado da palavra horror! A ordem vinha de uma instância ainda superior. O Poder Judiciário me enoja e suas relações promíscuas e subservientes ao Executivo também. A todo momento ouvíamos do Incra que o superintendente do mesmo e o bispo estavam chegando. Sinto muito, mas a ação do Incra nada mais foi do que conivente, principalmente durante os quatro meses de negociação que se arrastaram pela posse das terras. E os representantes do Incra que ali estavam não ajudaram em praticamente nada, mesmo sabendo que as negociações destas terras já estavam avançadas. O Incra praticamente se colocou do outro lado.
Mesmo indefesos e à mercê desta tortura psicológica dos policiais começamos a carregar os caminhões com as poucas coisas que sobraram da força dos tratores fúnebres que enterravam memórias sem compaixão. Para deixar um acampamento é necessário reunir todos e este tinha mais de 200 famílias. A prefeitura enviou uns ônibus e, com a ação dos policiais, enfiou forçosamente algumas famílias e as dispersou pelo interior do Estado. Separar famílias, amigos e companheiros de forma violenta. É esse o tratamento do Estado. Sem qualquer direito à dignidade, sempre com tortura e violência. Depois de carregar os caminhões, a Tropa de Choque começou a pressionar a entrada das famílias em outros ônibus que não sabíamos para onde iriam. Para os policiais não importa quem você é, eles passam por cima e, no dia seguinte, é torcer para não ter batido ou até mesmo matado alguma autoridade ou alguém ‘importante’. Toda a truculência e a desumanidade destes policiais foi flagrada. Ainda tentamos questionar a identificação destes policiais, o comando e até mesmo alguns representantes da prefeitura de Limeira que também se recusavam a dizer o nome. A única conversa é escudo na cara para sair da frente.

Resistir à lona preta não é fácil para essas pessoas. Mas resistir à Tropa de Choque é muito pior. São tantas humilhações, torturas psicológicas e violência física sem fim que qualquer representante de direitos humanos se indignaria. Aliás, não sei... Durante todo o dia disseram que o bispo estava chegando para ajudar. No entanto, ele só chegou no final do dia, depois que a Tropa de Choque já havia ido embora. Coincidência ou não? Esta foi considerada a segunda mais violenta reintegração do Estado de São Paulo. No total, foram mais de 30 companheiros feridos . E vocês ainda conseguem gostar do filme Tropa de Elite? Se pelo menos, uma vez na vida, o ser humano presenciasse uma situação destas e passasse por tudo isso, tenho certeza de que nunca mais seria a mesma pessoa. Assim como eu não o sou mais. Foram horas de horror, de violência, de desumanidade.
O sol já ia embora no meio do campo. Apenas marcas. Marcas nas vidas. Camas, fogões, geladeiras, colchões, brinquedos... Tudo derrubado, tudo no chão. Os animais corriam perdidos pelo campo, crianças ainda brincavam na terra, mulheres choravam sentadas sobre os troncos, homens acendiam seus cigarros em busca de força para o amanhã. Depois de ter vivenciado esta situação, uma parte de mim morreu. Minha visão romântica morreu. Minha vida morreu. A mediocridade morreu e a polícia coroou meu funeral. Eu sei que amanhã o sol nascerá. Um dia o sol nascerá para todos. “Enquanto eles querem guerra, nós queremos terra”, gritavam os companheiros dentro do ônibus. Avante companheiros!

Camila Marins
(19) 9656-7287
camila_marins@yahoo.com.br

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