Eu não sabia que a morte estava tão próxima. Não! Não se tratam de memórias póstumas e sim de memórias. Memórias que jamais serão póstumas. Quinta-feira talvez seja um bom dia para morrer. No dia 30 de novembro, o juiz anunciou a reintegração de posse das terras do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em Limeira. Truculência e violência foram as flores que cobriram meu caixão.
Na manhã desta quinta-feira, a Polícia Militar juntamente com a Tropa de Choque e a Cavalaria invadiram o acampamento onde estavam acampadas mais de 200 famílias. E o sol ficou esquecido entre a fumaça. Aquele que ainda tentava olhar para o sol não conseguiu, pois a fumaça das bombas impediu, sem contar os tiros e o gás lacrimogêneo. Sem qualquer respeito por direitos humanos, policiais invadiram o local e derrubaram os barracões das famílias, não respeitando nem mesmo a capela, nem mesmo o padre ou a freira que também se feriram.
Muitos companheiros do acampamento ficaram feridos, tiveram de ser levados ao hospital e, mesmo assim, a polícia não deu trégua, continuou sua ação truculenta passando por cima de crianças e mulheres. Talvez
a polícia, o prefeito de Limeira, o juiz e o oficial de justiça não vissem essas famílias como seres humanos repletos de direitos que deveriam garantir dignidade. Em meio às conversas, nós conseguíamos ouvir: “Vamos tirar esses vagabundos daí logo, porque eu quero ir para casa”. Mas do outro lado estavam famílias indefesas, mulheres, crianças e pessoas deficientes. Famílias que não têm como ou com o quê se defender. A única garantia é a presença de parlamentares ou representantes de entidades que podem ajudar a impedir a violência.
Mesmo assim, os policiais não queriam saber quem está do outro lado. O diretor de transportes de Limeira, Roger Rocha, disse para seus funcionários – servidores públicos- que se afastassem de nós. Essa movimentação gerou estranheza e cuidado. O pior começou a marchar. A Tropa de Choque retirou suas plaquetas de identificação e começou a marchar em nossa direção. Começaram a impedir a entrada e a permanência da imprensa que, graças ao bom senso, não nos abandonou e ali permaneceu para evitar uma tragédia ainda maior. Desesperadas, as famílias começaram a carregar os caminhões com os alimentos. O horror estava instaurado novamente e, desta vez, o sol não nos ajudava. O sol já baixava e a noite acobertaria mais atos violentos.
A Tropa de Choque vinha em nossa direção e por uma ordem superior batiam seus cacetetes nos escudos. Esse som me fez compreender ainda mais o significado da palavra horror! A ordem vinha de uma instância ainda superior. O Poder Judiciário me enoja e suas relações promíscuas e subservientes ao Executivo também. A todo momento ouvíamos do Incra que o superintendente do mesmo e o bispo estavam chegando. Sinto muito, mas a ação do Incra nada mais foi do que conivente, principalmente durante os quatro meses de negociação que se arrastaram pela posse das terras. E os representantes do Incra que ali estavam não ajudaram em praticamente nada, mesmo sabendo que as negociações destas terras já estavam avançadas. O Incra praticamente se colocou do outro lado.
Mesmo indefesos e à mercê desta tortura psicológica dos policiais começamos a car
regar os caminhões com as poucas coisas que sobraram da força dos tratores fúnebres que enterravam memórias sem compaixão. Para deixar um acampamento é necessário reunir todos e este tinha mais de 200 famílias. A prefeitura enviou uns ônibus e, com a ação dos policiais, enfiou forçosamente algumas famílias e as dispersou pelo interior do Estado. Separar famílias, amigos e companheiros de forma violenta. É esse o tratamento do Estado. Sem qualquer direito à dignidade, sempre com tortura e violência. Depois de carregar os caminhões, a Tropa de Choque começou a pressionar a entrada das famílias em outros ônibus que não sabíamos para onde iriam. Para os policiais não importa quem você é, eles passam por cima e, no dia seguinte, é torcer para não ter batido ou até mesmo matado alguma autoridade ou alguém ‘importante’. Toda a truculência e a desumanidade destes policiais foi flagrada. Ainda tentamos questionar a ident
ificação destes policiais, o comando e até mesmo alguns representantes da prefeitura de Limeira que também se recusavam a dizer o nome. A única conversa é escudo na cara para sair da frente.
Resistir à lona preta não é fácil para essas pessoas. Mas resistir à Tropa de Choque é muito pior. São tantas humilhações, torturas psicológicas e violência física sem fim que qualquer representante de direitos humanos se indignaria. Aliás, não sei... Durante todo o dia disseram que o bispo estava chegando para ajudar. No entanto, ele só chegou no final do dia, depois que a Tropa de Choque já havia ido embora. Coincidência ou não? Esta foi considerada a segunda mais violenta reintegração do Estado de São Paulo. No total, foram mais de 30 companheiros feridos . E vocês ainda conseguem gostar do filme Tropa de Elite? Se pelo menos, uma vez na vida, o ser humano presenciasse uma situação destas e passasse por tudo isso, tenho certeza de que nunca mais seria a mesma pessoa. Assim como eu não o sou mais. Foram horas de horror, de violência, de desumanidade.
O sol já ia embora no meio do campo. Apenas marcas. Marcas nas vidas.
Camila Marins
(19) 9656-7287
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